Por MRNews
Dentro de exatamente uma semana, o Rio de Janeiro será a capital do Brics, o grupo de países emergentes formado inicialmente por Brasil, Rússia, Índia e China e que se ampliou a ponto de reunir 11 países-membros e dez parceiros. A reunião de cúpula, que durará dois dias, é o ponto alto da presidência rotativa do grupo, ocupada pelo Brasil este ano.
O fato de o país liderar formalmente os debates entre os chefes de Estado e de Governo que estarão no domingo (6) e na segunda-feira (7) no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, com vista privilegiada para a Baía de Guanabara, faz com que o Brasil possa dar o contorno das discussões.
Na avaliação do especialista em relações internacionais Feliciano de Sá Guimarães, o Brasil não deve permitir que o Brics seja um bloco antiocidental, se afastando dos Estados Unidos e da Europa, apesar de que, sim, o Brics se propõe a ser uma nova ordem mundial.
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Feliciano Guimarães é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e diretor acadêmico e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), um centro de estudos independente, sediado no Rio de Janeiro.
“O Brasil jamais vai deixar isso acontecer. O nosso objetivo não é entrar em conflito com o Ocidente”, diz.
O professor pondera ainda que a ampliação do Brics dá mais poder ao grupo, mas ressalva, no entanto, que em um primeiro momento pode diluir a relevância do Brasil.
“Agora isso está diluído porque você tem novos membros plenos, como Irã, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Indonésia, e você tem os associados, que são vários”, explica.
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Em entrevista à Agência Brasil, o professor, também editor associado da revista Foreign Policy Analysis e editor-chefe da Cebri-Revista, aponta como o Brasil deve tratar a opção de moedas nacionais, em vez do dólar americano, no comércio entre os países-membros.
De acordo com Feliciano Guimarães, juntamente com a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30) e o G20, grupo de 19 países mais as uniões Europeia e Africana, a presidência brasileira no Brics é uma forma de recuperar prestígio internacional e sair do isolamento promovido em quatro anos do último governo.
O professor trata ainda de temas como inteligência artificial e do banco do Brics, “o mais importante produto de sucesso que o Brics criou”, que atrai até países de fora do grupo, avalia.
Agência Brasil: Qual o papel atual do Brics no mundo e qual a importância de a cúpula de líderes acontecer no Brasil?
Feliciano Guimarães: O Brics é um grupo de países que se sentia sub-representado, principalmente nas instituições econômicas e financeiras, lá nos anos 2000 e 2009, quando o Brics foi criado, e que, nos últimos 15 anos, se tornou um grande grupo de reforma da ordem internacional, de melhora do relacionamento entre os membros. Se você nota o relacionamento do Brasil e da China, do Brasil e da Índia, do Brasil e da Rússia, antes e pós-Brics, você nota a melhora do adensamento desse relacionamento. O Brics serve como um catalisador disso. Não é à toa que você tem 30 países que querem entrar no Brics. E também construir outras instituições internacionais que representam o melhor interesse desses países, como o New Development Bank [NDB, Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco do Brics], liderado pela ex-presidente Dilma [Rousseff] e o CRA [Acordo de Reserva Contingente, na sigla em inglês], um tratado internacional que favorece esses países, caso eles tenham crises macroeconômicas. Então, o Brics tem esse papel de representar uma ordem internacional reformada.
Agência Brasil: Nos últimos anos, o grupo, que tinha cinco integrantes, optou pela ampliação de membros e países parceiros. Qual a leitura que você faz desse movimento?
Feliciano Guimarães: De um modo geral, o aumento significa a força do Brics. O Brics tem uma incrível força de atração, muitos países querem entrar e ainda tem uma lista de países esperando. O G7 [formado por Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, Japão, França e Itália] é um grupo exclusivista, fechado, ninguém sabe como faz para entrar no G7, o máximo que os países do G7 fazem é convidar esporadicamente um presidente ou outro, como foi o [convite ao presidente] Lula, ao primeiro ministro da Índia, nas reuniões, mas ninguém sabe qual é o método para você pedir para virar membro do G7. O Brics, pelo contrário, mostra a força e a flexibilidade. Por outro lado, para o Brasil, aumentar o número de membros é negativo no curto e no médio prazos porque faz com que o privilégio que o Brasil tem de participar de um grupo de cinco países cujos três membros – Índia, Rússia e China – são grandes potências ou, se não grandes potências, países muito importantes na ordem internacional, como no caso da Índia, agora isso está diluído, porque você tem novos membros plenos, como Irã, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Indonésia, e você tem os associados, que são vários. Então você tem um novo equilíbrio, existe um novo Brics, um Brics antes e depois dessa ampliação. Ainda é muito cedo para dizer se é muito bom para o Brasil, se é bom, ou se é ruim. Em um primeiro momento, é mais negativo que positivo, mas é positivo no longo prazo porque aumenta a força do Brics como um grupo.
Agência Brasil: Existe a tentativa de formar uma nova ordem mundial calçada no multilateralismo?
Feliciano Guimarães: O Brics é a representação de uma nova ordem internacional. Não uma ordem que substitui a ordem liberal antiga, mas uma que procura reformar a ordem liberal liderada pelos Estados Unidos durante todas essas últimas décadas, para se tornar uma ordem cada vez mais inclusiva e que tenha mais representatividade dos países em desenvolvimento, do Sul Global, mas também do Norte Global, baseado na ideia de igualdade, equilíbrio de poder e tudo mais. O Brics representa uma tentativa, um grupo que tenta reformar as outras instituições internacionais vigentes, sistema das Nações Unidas, FMI [Fundo Monetário Internacional], Banco Mundial, OMC [Organização Mundial do Comércio] e criar instituições paralelas como o NDB, o CRA e talvez outras no futuro.
Agência Brasil: O crescimento de relevância do Brics é uma ameaça à hegemonia de potências ocidentais ou apenas um equilíbrio de forças em prol de mais cooperação internacional?
Feliciano Guimarães: É a segunda parte. Não há dúvida de que países dentro do Brics, principalmente com a entrada do Irã agora, ou mesmo a Rússia, em certos momentos querem que o Brics se torne um grupo antiocidental, mas o Brasil jamais vai deixar isso acontecer, vai sempre lutar para que isso não aconteça. Somos um país próximo do Ocidente, muita gente no Brasil se considera parte do Ocidente, e o nosso objetivo não é entrar em conflito com o Ocidente, do ponto de vista político ou geopolítico. A ideia do Brics é melhorar a cooperação entre os países que se sentiam sub-representados na ordem internacional liderada pelos Estados Unidos e pelos europeus.
Agência Brasil: Rússia e Irã fazem parte do Brics. Os dois países têm conflitos regionais. Irã com Israel [com recente cessar-fogo]; Rússia com a Ucrânia. O Brics pode ser um espaço para a busca da paz nessas regiões ou o fato de Ucrânia e Israel estarem de fora inutiliza esse fórum?
Feliciano Guimarães: O Brasil não busca transformar o Brics em uma plataforma geopolítica e isso aumenta muito os riscos e os custos. As prioridades da presidência brasileira são cooperação Sul-Sul, cooperação na área de saúde, investimentos, mudança climática. Não envolve questões de segurança e defesa. É claro que na hora em que você coloca o Irã, que acabou de ser atacado por Israel, e Rússia, em guerra com a Ucrânia, esses países trazem essas questões geopolíticas. A reunião dos ministros de Relações Exteriores que aconteceu no Rio de Janeiro há alguns meses já mostrou essa dificuldade, porque envolvia a discussão, dentro da ideia de reforma da ordem, a reforma do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas. Com novos membros, como Egito, aí já entra em conflito com a África do Sul, porque tem a posição africana em relação à reforma do CS, então gera um monte de dificuldades. O Brasil lançou uma nota condenando o ataque israelense [contra o Irã] muito dura e depois o Brics lançou uma nota condenando o ataque israelense, também muito dura, porque o Irã agora é um membro. Isso mostra as dificuldades que o Brasil terá daqui para diante em relação ao Brics, porque essas questões de segurança e defesa que o Brasil não quer tratar no Brics são automaticamente trazidas para o grupo.
Agência Brasil: O Brics tem quase metade da população mundial e robusta corrente de comércio entre os países. Há espaço para fazer transações comerciais fora do guarda-chuva do dólar, uma vez que os Estados Unidos não fazem parte do grupo? O presidente americano, Donald Trump, já se mostrou contrário a movimentos nesse sentido.
Feliciano Guimarães: O Brasil tem diminuído a ênfase nesse debate porque sabe da sensibilidade desse debate na Europa e, principalmente, nos Estados Unidos, porque é a moeda americana que está sendo questionada. O que o Brasil faz é continuar os debates, mas focado na discussão de trocas comerciais e não de formação de reserva de moeda estrangeira. O que são trocas comerciais? É você tentar fazer com que o chamado R5, as cinco moedas originais do grupo, que começam com a letra R – real [Brasil], rublo [Rússia], rupia [Índia], renminbi [China] e rand [África do Sul] -, transacionarem mais entre elas no comércio. O Brasil já faz uma parte do seu comércio com a China entre real e renminbi, sem passar pelo dólar. Há especulação de que uma parte importante do comércio entre Brasil e Rússia tenha passado entre real e rublo, sem passar pelo dólar, ou passando pelo renminbi no meio. Então isso tem aumentado, e para isso aumentar, você tem que passar por um conjunto de mudanças legislativas dentro do Brasil e no outro país para que os bancos reconheçam a moeda um do outro, porque eles estão acostumados e tradicionalmente usam o dólar. Mas nós não podemos fazer um debate agressivo da desdolarização porque as nossas reservas internacionais, de US$ 360 bilhões [cerca de R$ 2 trilhões], que são fundamentais para proteção macroeconômica do Brasil, são 75% delas baseadas no dólar americano, em títulos da dívida americana. O enfraquecimento abrupto do dólar no mercado internacional afeta a nossa própria reserva. Não podemos fazer isso. Temos que lentamente diversificar as nossas reservas.
Agência Brasil: O encontro de chanceleres do Brics em abril, também no Rio de Janeiro, fechou posição contrária ao protecionismo desencadeado pela guerra tarifária promovida por Trump. Essa pauta deve ainda permear o encontro da semana que vem?
Feliciano Guimarães: Essa questão da guerra tarifária com o Trump vai, obviamente, fazer parte dos debates da declaração final do Brics e vai ser um debate crítico, porque o Trump está atacando todos os países. Então o Brics está em posição conjunta. Seria interessante se coordenasse as suas ações em relação a como responder o Trump. Dá muito mais força aos países do Brics. É uma coisa sensível, mas seria interessante.
Agência Brasil: O Brics tem poder de persuasão para apontar caminhos para temas em voga, como transição energética e regulamentação de big techs e da inteligência artificial (IA)?
Feliciano Guimarães: Com certeza. Esses três temas fazem parte da agenda oficial do Brasil. O Brics é uma forma de concertação política, ou seja, os atores escutam uns aos outros, tomam posições, emitem declarações de soft law, não têm poder mandatório. Depois, essas declarações têm que ser, caso você queira mudar alguma coisa, internalizada, transformada e mudar as leis internas dos países. Então, o nosso debate sobre IA que tem no Congresso brasileiro é levado para uma discussão de uma forma ou de outra pela delegação brasileira, e aí você tem as discussões gerais sobre o Brics em relação à IA. O documento que sair de lá pode servir de base para influenciar o nosso debate aqui interno.
Agência Brasil: Qual o papel do banco do Brics (NDB), presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff?
Feliciano Guimarães: O NDB é ótimo, é o mais importante produto de sucesso que o Brics criou. Os cinco países originários têm cada um 15% das cotas, o que controla totalmente de forma igualitária. Cada país põe 15% desse orçamento geral, tem que tirar do seu orçamento nacional, em dólar, que é a moeda. Depois isso é distribuído entre os países-membros conforme os pedidos de projetos. Esses projetos de infraestrutura, transição energética, têm que ser sempre green, ou seja, de baixo impacto de carbono. Então, é o banco que tenta ter parâmetros de dispêndios de empréstimos dentro da nova tendência internacional de green investment, o investimento verde. Precisa ter mais orçamento no NDB, mas sempre tem essa limitação, e agora você nota que tem novos membros entrando. A Colômbia entrou, Uruguai, Bangladesh, esses países nem são membros plenos do Brics, mas podem ser membros do NDB.
Agência Brasil: O Brasil sediou a reunião do G20 no ano passado, também no Rio, agora faz a Cúpula do Brics e prepara a COP30, em Belém, em novembro. A liderança nesses encontros almeja quais objetivos?
Feliciano Guimarães: O objetivo geral é a reposição do Brasil no cenário internacional depois de quatro anos de [governo do ex-presidente Jair] Bolsonaro [2019-2022], em que o nosso prestígio internacional declinou muito, entramos em um período de isolamento político muito forte. O Brasil teve a chance de organizar essas três grandes conferências e recolocar o Brasil no centro de discussões de temas centrais para nós. O G20 trata de todos os temas da ordem internacional, menos defesa e segurança; a COP30 é a mudança climática, nosso tema fundamental, onde temos um poder maior na discussão. É um pouco isso, a recuperação das credenciais internacionais do Brasil e o uso dessas plataformas para atingir objetivos para o desenvolvimento brasileiro.
Entenda o Brics
O Brics é formado por 11 países-membros: África do Sul, Arábia Saudita, Brasil, China, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia, Índia, Irã e Rússia. Essas nações representam 39% da economia mundial e 48,5% da população do planeta.
Os países que têm status de parceiros são Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã, que anunciou a adesão no início de junho.
O grupo não chega a ser uma organização internacional ou um bloco formal. Por exemplo, não tem um orçamento próprio ou secretariado permanente.
Fundado em 2006, o grupo era Bric, iniciais de Brasil, Índia, Rússia e China. Em 2011, o acrônimo ganhou o s, de South Africa (África do Sul, em inglês).
Em 2023, o grupo passou a incluir Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita – ainda no processo de formalização – e Emirados Árabes Unidos. A Argentina chegou a ser convidada, mas sob a presidência de Javier Milei, recusou o ingresso. Em 2024, a Indonésia passou a fazer parte do grupo.
Os países-membros se alternam ano a ano na presidência do bloco. O Brasil será sucedido pela Índia em 2026.